quinta-feira, 5 de novembro de 2015

A RUA DA CONSTITUIÇÃO - Memória Histórica



A RUA DA CONSTITUIÇÃO
Memória Histórica
Cau Barata
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Dedico aos amigos Luiz Darcy, André Decourt, Luiz Antonio de Almeida, Mestre Cícero, Marcus Alves e Cláudio Prado de Mello, entre outros muitos colegas da rede e pessoais, todos defensores da Memória Brasileira, sobretudo da memória da Cidade do Rio de Janeiro, com seus estudos históricos e pela luta em prol da preservação do nosso patrimônio, seja o já conhecido ou àqueles que ainda estão para serem revelados. 


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No último dia 17 de Setembro, conforme já foi detalhadamente noticiado pelo amigo cronista Luiz Antonio de Almeida, juntos com o Mestre Cícero Fonseca de Almeida, nos encontramos para tomar um café na Livraria Cultura, rua Senador Dantas. Foi só colocarem as primeiras xícaras e alguns salgados na mesa que deu-se início ao "tiroteio" informacional, uma intensa troca de memórias que, bastava tentar puxar um pouco de ar para tomar o fôlego para o próximo raciocínio que, imediatamente, nos décimos de segundo destinados na busca daquele ar, um dos dois "debatedores" começava a explanar. Pegava-se o fio da meada do anterior e tomava um rumo que ia além das vidraças do Café-Cultura, e dando uma volta na cidade do Rio de Janeiro, em qualquer um dos seus séculos, passando pelos logradouros, pela arquitetura, pelo social, pelo vice-reino, pelo colonial, pelo império, pela república, pela modernidade, voltava quando era necessário novamente buscar um pouco de ar. Danou-se... imediatamente começava um dos memorialistas a colorir a cidade com palavras e mais palavras. Ficávamos atentos, quase absorvidos nas estórias do próximo, no entanto, atentos à sua respiração, na espera do vermelhidão do rosto - uma deixa de que o mediador precisava respirar e.... "dançou" - outro começava a falar.

Repito a frase do Luiz Antonio - "Conversamos das 17:30 até o momento em que fomos gentilmente convidados a nos retirarmos para que pudessem fechar a livraria...". O gentil Luiz foi cuidadoso na sua colocação. Lembrei-me dos saudosos tempos em que éramos expulsos dos lugares: a conversa continuava no hidrante da esquina ou procurava-se outro lugar aberto. Houve um tempo que eram poucos os estabelecimentos que "varavam" pela madrugada ... pelo menos na Zona Sul. Em Ipanema, talvez só o Merpuga (Mercados Frigoríficos Puga S.A), com sua sinuca, na Praça General Osório (o Jangadeiro fechava antes); no chamado Baixo Leblon - o Jobi (1956), o Diagonal (1958) e o Guanabara (1964) e, por vezes, íamos buscar o centenário Lamas, na Rua Marquês de Abrantes, no Flamengo (desde 1976). Existiam outros... a memória falha, mas não importa, foi bom demais sentir novamente, ao lado do Luiz Antonio e do Cícero o gostinho da expulsão literária.
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"Falamos da Retirada da Laguna à urbanização de Ipanema; de Antonio Conselheiro a Euclides da Cunha; do Rei Salomão a Pedro I; da antiga pavimentação das ruas do nosso Rio à Biblioteca do Professor Cândido Mendes; da genealogia de Jesus Cristo a morte do Marechal Bittencourt..." (Luiz Antônio)
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Este foi um resumo de quatro linhas. O amigo Luiz Antonio poupou espaço.

Pois bem...  escrevo hoje para falar da Rua da Constituição. 

Houve um momento que conversando sobre o Rio de Janeiro - evidente, o tema principal da noite - o Mestre Cícero de Almeida interrompe um dos dois e, com a urgência que merecia, nos alertou e intimou: - vocês têm que ir, o mais rápido possível, na rua da Constituição. 

Cícero conseguiu a nossa atenção. Imaginamos que estava por falar do tempo que por ali andava o Príncipe, depois Imperador, D. Pedro I, frequentando o antigo Teatro de São João (hoje João Caetano), em busca de alguns rabos-de-saia, ou para falar que o nome do logradouro fazia uma referência ao mesmo príncipe D. Pedro que, ao entardecer, compareceu no teatro e, do seu terraço, leu em voz alta o decreto de 24 de fevereiro de 1821, garantido a aceitação da Constituição que se fazia em Portugal. Na mesma noite houve no teatro espetáculo de gala, com a representação da ópera Cenerentola e de um bailado (1).

(1) La Cenerentola, ossia La bontà em trionfo (Cinderela, ou Bondade Triumphant),  uma ópera jocoso, drama em dois atos do grande Rossini. O libreto foi escrito por Jacopo Ferretti, baseado no conto de fadas Cendrillon, por Charles Perrault. A ópera foi estreada em Roma, do Teatro Valle, em 25 de janeiro de 1817. Em 1821, os atores da encenação Cenerentola dividiram o palco com o Príncipe D. Pedro que, quase esvaziando a platéria, levou a todos ao campo da Lampadosa, hoje Praça Tiradentes, para assistí-lo, em voz alta,  ler o decreto de 24 de fevereiro de 1821 


Nada disso... intimava a nos dirigirmos, o mais rápido possível, à rua da Constituição, para fotografá-la. 

- Como Mestre Cícero ? 

Sim... vocês não podem perder a oportunidade de ver o século XVIII que se revelou dos escombros da memória então perdida, e que, em breve, muito breve, novamente se perderá, entrando em uma escuridão que, talvez, no futuro nunca mais se revelará. 

- Desembucha Mestre ? 

As obras para a passagem do futuro VLT, na rua da Constituição, há algum tempo, chegou aos velhos trilhos dos bondes que por ali circularam no séculos XIX e XX, no entanto, ao retirarem os trilhos e aprofundarem um pouco mais o terreno, para a construção da estrutura que vai suportar o pesado comboio do VLT, descobriu-se o que poderíamos chamar de um tesouro urbanístico do passado. Está ali, como está em Ouro Preto, como está em Mariana, como está em Vassouras, como está em Parati, como está em algumas das antigas cidades brasileiras, o calçamento em pedra original, perfeito, com sua canaleta central para o escoamento da água. Uma obra dos antigos administradores... e, seus sucessores, ao instalarem as linhas de bonde, no século XIX, talvez conscientes de que deveriam preservar àquele piso, o cobriram cuidadosamente e, sobre eles, colocaram os trilhos do novo transporte que a modernidade pedia: o Bonde. Esta é uma oportunidade rara e efêmera... tudo será destruído (ou retirado), em breve, pelos novos administradores (parece que nem encoberto será e sim destruído). Isto dito em setembro. 

Eis a razão de escrever hoje sobre a origem da Rua da Constituição e, evidente, colocar algumas da fotografias que fiz no sábado, dia 19 de setembro, acatando a imperiosa e valiosa dica do Mestre Cícero de Almeida, o mesmo que me fez escrever, há algum tempo, a história do terreno do palacete São Cornélio, aqui nesta página do facebook “Rio de Janeiro: Onde Mora os meu antepassado”.

Cícero, permita-me não recuar tanto esta história no tempo... até poderia, mas teria que desenvolver alguns parágrafos para falar de um grande descampado, quase selvagem e mal explorado pelos fluminenses (ainda não existia o nome carioca - para os nascidos na Cidade). Para os que viveram naquela época, estamos falando do sertão, ou seja, tudo que estava para além da vala, hoje rua Uruguaiana. Aquela vala, que teria sido lajeada pela administração pública, por volta de 1643, é muito antiga, anterior ao tempo da fundação da cidade. A encontro citada em documentos de 1634, como referência de demarcação de terrenos. Um velho cronista a cita em 1593, porém não transcreve o documento. Em 1573, vem citada em uma demarcação como um "ribeiro", onde se colocou um marco divisório de terras e, Vieira Fazenda, a identifica como um fosso natural, mais tarde transformado em vala da cidade. 

Deixemos a Vala para outra ocasião... 

ROSSIO - século XVII

Não recuando tanto no tempo, vamos para o final do século XVII, onde toda àquela região denominava-se Rossio. Digo, toda, por praticamente não existir arruamentos naquele sertão, para além da Vala, salvo o Caminho do Capuerussú, um dos mais antigos da Cidade, já existente no começo do séc. XVII. 

Segundo vejo em um dicionário do século XVIII, mais precisamente de 1712, a palavra "Rocio" pode ser entendida como orvalho, chuva miúda, propriamente. Segundo Plínio, é a "orvalhadura" que faz cair das vinhas os bagos já limpos e, algumas vezes, o "rocio" vale o mesmo que Praça. O Licenciado Duarte Nunes de Leão (1530-1608) distingue "Rocio" de "Rossio", dando a entender, que Rocio, propriamente é orvalho, e Rossio, praça ou espécie de prado na vila, ou cidade. Um e outro se pode derivar do latim ROS, orvalho, e ROSSIOS - que são lugares descobertos, e sujeitos às influencias e orvalhos do céu. Pois bem, daqui para diante usarei a forma "rossio", com os dois ss.



Lembrei-me de Noel Rosa: 


O orvalho vem caindo
vai molhar o meu chapéu/ 
e também vão sumindo, 
as estrelas lá do céu 

Mestre Cícero, para que este orvalho caia, para que ele molhe o seu chapéu ou lave os bagos das uvas que caem dos vinhedos é necessário tudo estar em um grande descampado. É neste "rastro etimológico" que vemos o pedido dos moradores do Rio de Janeiro, naqueles primeiros dias do seu nascimento, quando em 16 de julho de 1565, obtiveram a doação da sesmaria que deu origem ao patrimônio territorial da cidade. Estácio de Sá concede aos moradores légua e meia em quadra, “começando da casa de pedra ao longo da Bahia”. Requereram esses moradores “terras para rossio do concelho para pastos de gado”, ou seja, que reservasse para o patrimônio da Cidade um grande descampado, onde o orvalho cai, à céu aberto, sobre os novos pastos que forneceria alimento ao gado, necessário ao abastecimento da Cidade. O despacho de Estácio de Sá, “visto a petição ser justa”, deu légua e meia “para pastos e rossios desta cidade”. . . “como em sua petição diziam. Ora, lá está a nossa Rua da Constituição, outrora dos Ciganos, sulcada em terras do grande descampado da Cidade, seu Rossio, que era tudo que ficava, já disse antes, para além da rua da Vala (Uruguaiana), ou seja, as hoje Praça Tiradentes e Campo de Santana, tudo unido em um só grande descampado.

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Já no século XVII, foram os moradores do Rio de Janeiro, aos poucos, avançando para além da Vala, em direção ao grande descampado. Lá morava, por exemplo, Júlio Marcelo, ou Júlio Morette, com sua esposa Francisca da Silva, carioca, com quem havia se casado em 1681. Sem filhos e, por motivo de doenças, ao que tudo indica, o casal vendeu 50 braças de testada por 100 de sertão, sitas no campo e rossio desta cidade, em que tinha casa de vivenda coberta de telhas, senzala coberta de sapê, com seu forno, roda e mais benfeitorias de plantas, na qual mora Carlos Antonio, cunhado deles vendedores, em 25 de julho de 1696, para Maria das Neves, viúva de Antonio Fernandes.

Vemos aqui o fracionamento de uma grande propriedade, no rossio, avançando 100 braças para o sertão que, no decorrer dos anos, vai delineando o espaço urbano do descampado, originando ruas, praças e outros descampados, de menores proporções.

É interessante perceber uma fatia de estrangeiros, em pleno século XVII, vivendo no rossio do Rio de Janeiro. Júlio Marcelo, havia aportuguesado seu nome, pois de origem era Júlio Morette e, seu cunhado, Carlos Antonio, casado com Ana da Silva, irmã de sua mulher era, na verdade, Carlos Antonio Ascoli, nascido em 1622, natural de Veneza, Itália, e já se encontrava vivendo no Rio de Janeiro, em 1676. Quanto às irmãs Silva, em gerações mais antigas, são provenientes de Ilhéus, Bahia.

Francisca morre no ano seguinte da venda desta "Chácara" - permita-me identificá-la assim pois, para àquele final do século XVII, tinha que ser algo maior do que apenas uma casinha com quintal, pois tinha uma Casa Telhada (não muito distante das famosas Olarias que ficavam próximas à base do Morro da Conceição), tinha senzala coberta de sapê, um forno, com roda, além de outras benfeitorias. É... certamente uma chácara em pleno descampado.

Antonio Fernandes, citado acima, era português de Santa Marinha de Crestuma, bispado do Porto, e havia falecido no Rio de Janeiro, a 27 de dezembro de 1686. Deixou bens para a sua família, a viúva Maria das Neves, carioca, e quatro filhos, a ponto de pagarem 160$000, por escritura de compra e venda, para aquisição desta propriedade no rossio da Cidade. Maria das Neves, esta antiga moradora em terras do rossio da Cidade, era bem relacionada, conhecia muita gente e era conhecida por muitos afinal, era descendente de povoadores da Cidade, que aqui estiveram no tempo da conquista. Tinha raízes, tinha história. Sua bisavó foi moradora na Ilha Grande, em 1593.

Mestre Cícero, devido aos fracionamentos do grande rossio/descampado em novos lotes/chácaras, conforme já citei, foram alterando-se, no final do século XVII e princípio do XVIII, o espaço urbano daquela região, surgindo novos logradouros e outros descampados, mais reduzidos que, ao longo dos anos, alguns deles geraram praças, tais como a atual Praça Tiradentes e Praça da República (Campo de Santana).


CAMPO DE SÃO DOMINGOS - 1706
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No princípio do século XVIII, uma nova denominação vai surgir desbancando, aos poucos, àquela de Rossio, que remonta à sesmaria de 1565. Inicia-se a edificação da primeira Capela de São Domingos, em terreno cedido pela Câmara Municipal, em 21 de novembro de 1706. Pertencia a uma confraria de pretos e possuía alguns recursos. Foi edificada, por autorização do Bispo D. Francisco de S. Jerônimo, em terreno de 20 braças de rua a rua, e seis de fundos, no rossio da Cidade, fazendo testada pela rua dos Escrivães (depois General Câmara), diante do cemitério do rossio da cidade, cedido à irmandade dos negros pela Câmara Municipal, com a condição expressa de não poder vender nem alienar o mesmo. Em 1708, em sua capela já funcionava a Irmandade de São Domingo. Em 1709, ainda prevalece a denominação de rossio da Cidade, mesmo para terrenos nas adjacências da Capela de São Domingos. Os irmãos - escravos ladinos - eram enterrados no adro e no interior da capela.

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Mestre Cícero, duzentos anos depois da criação da Irmandade, ou seja, em 1908, a Igreja de São Domingos encontrava-se em ruínas, com tetos desabados, paredes desaprumadas, sinos imprestáveis. Do mesmo jeito ainda permanecia em 1914. Desapareceu com a abertura da Avenida Presidente Vargas, entre 1942 e 1943.
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Gostaria de lhe deixar, também, como registro, que em um dos altares da Capela de São Domingos haviam colocado a imagem da Senhora de Santana, que deu origem a Igreja de Santana, depois de constantes desavenças com os irmãos de São Domingos. Desta última vai nascer, ainda no século XVIII, o Campo de Santana, mais um fracionamento do antigo Rossio da Cidade.

Finalmente, no ano de 1723, Pedro da Costa, homem preto e forro, e sua mulher Rosa Gonçalves vendem 6 moradas de casas térreas, de taipa de mão, sitas no Campo de São Domingos, ao Alferes Gervásio Barbosa. Enfim, entre 1706 e 1723, a importância da devoção à São Domingos cresceu entre os afros-cariocas e suas ações, missas e possíveis festejos ganharam destaque a ponto da maior parte do grande rossio, sobretudo as terras entre os atuais Campo de Santana e a rua Uruguaiana, passam a ser conhecidas por Campo de São Domingos.

Daquele ano de 1723 até fins do século XVIII, o nome Campo de São Domingos continuou dominando sobre a documentação que trata daquela região porém, em meados daquele século, passou a dividir seu nome com os novos campos que surgiram com as Capelas de Santana e da Lampadosa.

CAMPO DE SANTANA - 1732

A toponímia de Santana vai dominar a parte mais distante da "Cidade" e foi bem maior do que hoje conhecemos por Campo de Santana. Tem sua origem em um desentendimento entre a irmandade de São Domingos e a irmandade de Santana, que funcionava dentro da Igreja de São Domingos. A Irmandade de Santana é anterior a edificação de seu templo, criada antes de 1732 na Igreja de São Domingos. Diante dos conflitos e imposições dos Irmãos de São Domingos, resolveram os de Santana abandonar o teto que lhes acolhia desde a fundação da Irmandade.
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A requerimento dos pretos crioulos da Cidade, e de outros devotos da mesma Santa, obtiveram por provisão episcopal de 30 de Julho de 1735, autorização para erguer o templo, cujas obras tiveram início a partir de 1738. Somente em 1758 vemos a indicação da toponímia "Campo de Santana", para àquelas bandas.
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CAMPO DA LAMPADOSA - 1747

Da mesma forma que os anteriores - São Domingos e Santana - sua origem vem da construção de uma capela do mesmo nome: Capela de Nossa Senhora da Lampadosa. Edificada em virtude da provisão de 5 de setembro de 1747, em terras doadas à irmandade. Inaugurou-se no ano seguinte. Documentada em 1749, quando da criação da terceira freguesia urbana da Cidade do Rio de Janeiro, a de São José, com terras desmembradas da antiga freguesia de São Sebastião.

Em menos tempo que as anteriores, e já na linha dos costumes ou tradição formada e reforçada naqueles tempos, já em 1755 atestamos o nome Campo da Lampadosa, em uma escritura de venda de chãos, com três braças de testada por 18 de fundos.
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Trata-se de um campo que se estende da rua da Conceição até o Campo de Santana. Este antigo Campo da Lampadosa, vai se reduzir de tal forma que, alguns anos depois estará constituído por um quadrilátero formado pelas ruas Carioca, Silva Jardim, Pedro I, Visconde do Rio Branco, Constituição, Gonçalves Ledo, Imperatriz, Leopoldina, Teatro e 7 de Setembro e Avenida Passos. Em 1808 resumia-se à Praça das Lampadosa, hoje Praça Tiradentes.
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CONSTRUINDO UMA PRAÇA - 1791

Mestre Cícero, em 1757 ainda não existia um delineamento de um logradouro que se pudesse chamar de Rua, e sim uma trilha, de chão batido que, em continuação da rua do Cano (Sete de Setembro), corre pelo Campo da Lampadosa - que, alguns anos depois, reduzido, vai formar a atual Praça Tiradentes -, até desembocar no Campo de Santana.

Em 1770, já existe algum casario, nos fundos da Igreja da Lampadosa e do lado direito daquele caminho/trilha, de quem vai para o Campo de Santana porém, com testada para o "descampado" da Lampadosa que se avulta nos fundos e no lado esquerdo da Igreja. Não há confrontações até alcançar o Campo de Santana. Ainda não pode ser identificado como uma rua. As escrituras de compra e venda de chãos e casas, nesta região, entre 1755 e 1796 são taxativas: Campo da Lampadosa.

Em 1791, surge uma pequena concentração de casas, porém no que seria o final da atual rua da Constituição, com frente para o Campo de Santana. Já está bem reduzido e delineado o espaço que foi do Campo da Lampadosa, nome que ainda resiste, mas já com um aspecto do que poderia ser uma grande praça, formada entre o final da Rua da Carioca e o Campo de Santana. Na base deste descampado, próxima à Cidade, vai surgir a Praça Tiradentes. Enfim, a configuração deste espaço, em 1791, é como se a praça Tiradentes fosse bem mais comprida do que é, estendendo-se até o Campo de Santana.

Por esta época começam os melhoramentos e calçamentos na região do Campo da Lampadosa, sob a administração do vice-rei D. José Luiz de Mello e Castro, Conde de Rezende, o mesmo que criou o Passeio Público. O Conde de Resende tratou do aterro do Campo da Lampadosa, iniciado com dinheiro angariado para tal fim, entre os comerciantes e os proprietários das imediações. Embora obra não concluída, possibilitou maiores oportunidades para a construção de novas casas em terrenos ganhos sobre os charcos. Também tratou do aterro do Campo de Santana, principiado mas não concluído.

Também por esta época, o Campo da Lampadosa entrou para a história maldita, instalando-se nele, em 1792, o cadafalso no qual viria a ser enforcado Tiradentes. Consta que à porta da Igreja da Lampadosa, para a sua última prece, ajoelhou-se Tiradentes em caminho para a forca. Talvez uma tradição dos algozes da memória brasileira que, pouco mais de dois séculos depois, viriam a "esquartejar" o piso da histórica Rua da Constituição.

Finalmente, Mestre Cícero, podemos perceber, em fins do século XVIII, a formação de um espaço que se encaixa, perfeitamente, no perímetro da atual Praça Tiradentes e a construção de um casario, ao longo do logradouro, que se estende, pelo lado direito deste espaço, como se fosse um grande corredor, até o Campo de Santana. Aí vai nascer a nossa famosa Rua da Constituição.
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Não posso deixar de registrar que o principal fator de formação deste novo espaço, pode-se dizer que foi Antonio Petra de Bittencourt, português, natural da Ilha Terceira, rico proprietário, abastado comerciante de vinho, aguardente, fazendas, sal, açúcar, carne, couros e sebos, e que chegou ao Rio de Janeiro, por volta de 1789. Era irmão do desembargador Agostinho Petra de Bittencourt, que chegou ao Rio de Janeiro pouco depois de 1801.

Pois bem, Antonio Petra de Bittencourt, ao chegar no Rio de Janeiro, foi logo procurando um lugar para morar e as oportunidades maiores estavam para além da rua da Vala (Uruguaiana), por conta dos grandes descampados da Lampadosa e de Santana, unidos que estavam por um grande corredor formado entre as atuais ruas Visconde do Rio Branco e Constituição. Encontrou, no meio deste grande corredor, chãos sadios, talvez um daqueles que foi beneficiado com os aterros feitos pelo Conde de Rezende, e os adquiriu, arriscaria até dizer que os tenha herdado, pouco depois de 1791, de seu sogro, o Capitão Manuel Gonçalves Moledo, português, estabelecido no Rio de Janeiro, antes de 1776.  Petra de Bittencourt tornou-se um homem extremamente rico, e foi casado três vezes, com três irmãs, todas filhas do citado Moledo.

Antonio Petra de Bittencourt, promoveu os melhoramentos necessários no terreno que acabava de comprar, fez aterrar os alagadiços que ainda existiam, e nele ergueu um conjunto de casas que dividiria àquele corredor ao meio. Já estavam erguidas em 1796, tornando-se o principal marco de formação de um novo espaço urbano na Cidade do Rio de Janeiro. Àquelas propriedades dividiram o Campo da Lampadosa em dois.

Definiu-se assim, com a construção das propriedades de Antonio Petra Bittencourt, um novo espaço urbano, um novo campo que, pouco depois, viria a ser conhecido por Campo dos Ciganos.

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Ainda em 1798, segundo relatou Restier Gonçalves, recomeçaram a obra de saneamento da região da Lampadosa, com aterros, canalização de águas servidas, calçamentos, entre outras benfeitorias. Foi esta obra submetida a uma rigorosa vistoria, em 5 de junho de 1798, por técnicos do município. Na ocasião desses melhoramentos - ainda Restier Gonçalves - maior vazão teve uma grande vala de esgoto que passava pelo meio do campo da Lampadosa, em toda a sua extensão, e foi coberta por resistente lageamento.

CAMPO DOS CIGANOS - 1804

Consta que no tempo do comerciante Antonio Petra, um grupo de ciganos - proibidos, como também eram muitos afros, de residirem no núcleo da Cidade - foi buscar os descampados da Lampadosa, depois de uma tentativa de se fixarem pela região do Valongo. É fato que Joaquim José, Cigano, já em 1767 residia para as bandas do Campo de São Domingos, o mesmo que deu origem ao da Lampadosa, e que, agora dividido ao meio, gerou um novo espaço que vai ser conhecido por Campos dos Ciganos.

A primeira vez que vemos esta denominação dada ao novo espaço urbano, formado pelas atuais ruas da Carioca, Silva Jardim, Pedro I, Visconde do Rio Branco, Constituição, Gonçalves Ledo, Imperatriz, Leopoldina, Teatro, Sete de Setembro e Avenida Passos, ocorre em 1804, quando o Hospital da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, proprietário de chãos naquele lugar, os vende ao Capitão Francisco Gonçalves da Fonseca - sitos no campo dos Ciganos.

Mestre Cícero, levando em conta que o título desta minha página no facebook é "Rio de Janeiro: Onde mora meu antepassado ?", não posso deixar de registrar que no ano de 1804, moravam no Campo dos Ciganos, o Capitão Francisco Gonçalves da Fonseca, o Capitão Francisco José Tinoco de Almeida, José da Mota Guimarães, a viúva de José dos Santos, Francisco José da Silva, o Capitão João Fernandes Viana e, lógico, a família Petra de Bittencourt.

Sobre o Campo dos Ciganos, escreveu um velho cronista: Antigamente esta Praça era um charco barrento, que depois de aterrado, ficou conhecido pela denominação de Rocio, ou largo do Pelourinho, por se ter no seu centro levantado o Pelourinho. Antes, do anno de 1808, conforme conta o historiador do Tombamemto do senado da câmara, chamava-se ao Rocio, campo dos Ciganos, e campo da Lampadosa.

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E nítido nesta gravura o grande corredor unindo o remanescentes dos três campos e a concentração de casario, no centro da gravura, onde esteve grande parte do Campo de São Domingos. Todos os quatro fizeram parte, no passado - conforme ficou dito - do Rossio da Cidade.

RUA DOS CIGANOS - 1810

Finalmente, com a formação do novo espaço, então denominado Campo dos Ciganos e cercado de casario em suas quatro faces, os velhos caminhos tomaram forma, alinhamentos e calçamentos. Havia aumentado, em muito, o número de pedestres, sobretudo no após a chegada da Família Real, em 1808. O logradouro que liga a rua Sete de Setembro até ao Campo de Santana, passando pela lateral direita da nova praça, aparece pela primeira vez denominado de "Rua dos Ciganos", em uma escritura de 1810. Origem da atual rua da Constituição. 

Mestre Cícero, esta é a rua que vimos recentemente ser redescoberta com o seu primitivo calçamento. Sobreviveu este renascimento por um espaço de tempo muito curto. Nasceu no século XVIII, alinhada e calçada na virada daquele século para o XIX, batizada de rua dos Ciganos em 1810, preservada por camadas de aterros feitos ao longo do século XIX - mesmo sem a existência de um Rodrigo de Mello Franco de Andrade, e rebatizada de Rua da Constituição em 1865. Esteve adormecida no decorrer do século XX. Percebeu - escondida, em segredo e com profunda alegria - a criação do Servido do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1937; lamentou com profundo pesar e temor a morte de Rodrigo de Mello Franco em 1969. Tempos de trevas estavam por vir, como veio para centenas de bens de patrimônio histórico. Ela sabia disso... Foi despertada do seu sono patrimonial, com salvas de fogos e gritos de eureka pela arqueologia brasileira e seus parceiros do IPHAN para, finalmente, com sabor de crueldade, depois de muitos se vangloriarem por sua descoberta, transformaram-se nos algozes da memória, e a destruíram. Pobre Constituição... Soterraram a Constituição... Rasgaram a Constituição.

Aos poucos aformoseou-se o espaço, melhoraram seus acessos, prolongados para longe, já ultrapassando o Campo de Santana na direção do grande mangue de São Diogo.

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ANTIGOS PROPRIETÁRIOS NO CAMPO DOS CIGANOS/PRAÇA TIRADENTES - 1811

Cícero, mais uma vez valendo-me do título da página do facebook - "Rio de Janeiro: Onde mora meu antepassado?" - segue uma relação de moradores no Campo ou na Rua dos Ciganos, no ano de 1811:

1.      o Escriturário da Contadoria da Marinha, Antonio Francisco Lima. na rua do Campo dos Ciganos defronte a Rua  do Lavradio - portanto, vizinho ao palacete;
2.      o escrivão Antonio Martins Pinto. no Campo dos Ciganos;
3.      o agravista Antonio Saraiva de Sampaio, no Campo dos Ciganos;
4.      o Major Fernando Telles da Silva, na rua dos Ciganos;
5.      o Capitão de Mar e Guerra Francisco Maria Telles, no Campo dos Ciganos - não tem nenhum parentesco com o barão da Taquara;  
6.      o Capitão Gonçalo Vieira da Silva Telles, na rua dos Ciganos - também não tem nenhum parentesco com o barão da Taquara;  
7.      o Sargento Mór Jaques Augusto Cony, no Campo dos Ciganos - autor do Mapa de 1809, da Fazenda Nacional da Lagoa Rodrigo de Freitas, conforme nosso último trabalho referente àquela lagoa (Barata e Cláudia Gaspar);
8.      Joaquim Nabuco de Araujo, na rua dos Ciganos;
9.      o Deputado José da Silva Lisboa, no Campo dos Ciganos;
10.  o Desembargador José Duarte da Silva Negrão Coelho, no Campo dos Ciganos - que veio acompanhando a Corte Portuguesa, na sua viagem de transmigração em 1808;
11.  o Ajudante do Procurador da Coroa, José Joaquim Nabuco de Araujo, no largo dos Ciganos,
12.  o Capitão José Machado, na rua dos Ciganos; e
13.  o Oficial da Secretaria de Estado dos Negocios Estrangeiros e da Guerra, Simeão Estellita Gomes da Fonseca, na rua dos Ciganos.

Percebe-se um time de primeira, de alto escalão, morando na rua e no Campo dos Ciganos, em uma época que a cidade já havia avançado muito para estas bandas. Todos estes, por muitos anos, percorreram o piso recentemente descoberto, para chegarem em suas casas, a pé ou de carruagens. Na verdade, ganharam muito estes e outros moradores, por ser este local um dos preferidos dos cultores da boa arte da representação, com a realização das grandes peças teatrais e das tradicionais óperas, encenadas no Real Teatro de São João - hoje João Caetano, inaugurado em 1813, com o drama lírico "Juramento dos Numes"- poema de Gastão Fausto da Câmara Coutinho e música do famoso maestro e compositor Marcos Portugal.


PALACETE RIO SECO - 1811

Em 1811, já não residia mais naquelas casas, marco da formação da futura praça Tiradentes, o velho Antonio Petra de Bittencourt. Estava morando, agora, na rua da Cadeia. Antonio Petra, comerciante e capitalista que era, não querendo perder a oportunidade da grande oferta de procura de chãos e casas de moradias, que acontecia na Cidade do Rio de Janeiro, por conta da chegada da Corte Portuguesa, em 1808, vendeu àquelas propriedades do Campo dos Ciganos ao milionário lisboeta, Joaquim José de Azevedo (1761-1835), Almoxarife da Real Casa das Obras e de todos os Reais Paços em Lisboa, e que fora um dos passageiros embarcados, em 1808, na nau capitânea, Príncipe Real, a principal e a de maior tonelada, onde justamente estavam o Príncipe Regente D. João, e sua mãe, a Rainha de Portugal D. Maria I.

Foi Joaquim José de Azevedo que, naquele mesmo ano de 1811, adquiriu da família Petra de Bittencourt, todo àquele correr de casas do Campo dos Ciganos. Demolindo algumas delas para construir sua casa de moradia, um sobrado "apalacetado" - de dois pavimentos, com salões decorados, dependências para a criadagem e para a cavalariça -, que reforçava a divisão daquele corredor ao meio. Àquele palacete dividiu o Campo da Lampadosa em dois.
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Palacete do Visconde do Rio Seco

No ano seguinte, por decreto de 12.10.1812, foi agraciado com o título de Barão do Rio Seco, elevado, depois, ao título de 1.º Visconde do Rio Seco, por Mercê do Rei D. João VI, de 11.02.1818. É com base neste título - Barão do Rio Seco - que Thomas Ender, ao desenhar o Campo dos Ciganos, em 1819, fez questão de assinalar sua residência, a qual chamou de Palai des Cte. do Rio Seco.

Pois bem, Mestre Cícero, sobre as memórias deste Palacete e a origem do seu terreno, acabei desenvolvendo um estudo isolado, separado deste sobre a Rua da Constituição. Por ter ficado muito grande merecia estar separado. A história da Rua da Constituição arriscava ficar em segundo plano por conta da memória que estava desenvolvendo para o Palácio do Rio Seco. Separei em duas memórias.

Assim, clique no seguinte link para acompanhar a história do Palacete Rio Seco:
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ANTIGOS PROPRIETÁRIOS NO CAMPO DOS CIGANOS/PRAÇA TIRADENTES - 1824

Em 1824, segundo a proposta de nossa página do facebook - "Rio de Janeiro: Onde morava nosso antepassado", identificamos os seguintes moradores na rua dos Ciganos (hoje Constituição):

1.      Alexandre Eloi Por­telli, Tenente General, rua dos Ciganos 32.

2.      Antonio José Gonçalves Bastos, negociante, rua dos Ciganos;

3.      Antônio Mariano de Azevedo, rua dos Ciganos 42;

4.      Estanislau Antonio Teixeira da Matta, rua dos Ciganos;

5.      Floriano de Oliveira Araujo, rua dos Ciganas 24;

6.      Francisco José Fernandes Barboza, negociante, rua dos Ciganos;

7.      Inocêncio José Gomes, Capelão, rua dos Ciganos, número 21;

8.      Joaquim José Gomes, Lente da Aula do Comercio,  rua dos Ciganos;

9.      José Antonio de Alvarenga Pimentel, rua dos Ciganos 53;

10.  José Caetano Ferreira de Aguiar, Senador, rua dos Ciganos 43;

11.  José dos Santos Leão, rua dos Ciganos.

12.  Leopoldo Augusto da Camara Lima, Escrivão, rua dos Ciganos .

13.  Luis da Costa Franco e Almeida, Major Graduado, rua dos Ciganos 36.

14.  Manoel Antonio da Silva Mene­zes, Sargento Mór, rua dos Ciganos 53.

15.  Manoel de Azevedo Marques, Escrivão do Selo do papel, rua dos Ciganos 42

Quem foram estas personalidades que frequentaram e moraram na rua da Constituição ?

Alexandre Eloy Portelli, um dos que muito caminhou sobre este histórico calçamento que acaba de ser destruído, foi Marechal do Exército Brasileiro. Veio para o Brasil em 19/02/1781, no posto de Capitão. Brigadeiro de Infantaria (1808). Tomou parte da Campanha do Uruguai (1811), Marechal (1813), Vogal (1814) e Conselheiro de Guerra (1818).

Antonio Mariano de Azevedo, mais um dos que muito caminhou sobre este histórico calçamento que acaba de ser destruído. Foi professor da antiga Escola Central, RJ - no largo de São Francisco (morava perto do trabalho). Era Coronel do Exército Brasileiro e Ajudante de Campo de Sua Majestade Imperial, o Senhor Duque de Bragança.

O Reverendo Inocêncio José Gomes, que morava no número 21, da hoje rua da Constituição, era filho do tenente coronel Manuel José Gomes. Lamento não ter jogado água benta sobre o calçamento da rua em que morava, talvez tivesse ajudado a sua "salvação".

O senador José Caetano Ferreira de Aguiar, também era religioso. Cônego, Doutor, que esteva à frente da freguesia de Santa Rita, quando da chegada da Família Real Portuguesa, em 1808. Foi Vigário Geral do Bispado do Rio de Janeiro e Senador do Império.
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Rua da Constituição - 1922




Em 1834, o historiador Baltazar Lisboa já denomina o antigo campo de "praça": - Merece tambem entrar na enumeracão das Praças o Campo chamado dos Siganos , ou da Lampadoza, em razão da Capella que antigamente se erigio ali, e que tem 75 braças de comprido e 51 de largo, e hoje tem o titulo de Rocio da Cidade, em o qual se tem lindamente edificado, e formoseado o lugar com excellentes casas, decente Theatro, em lugares que há pouco menos de 35 annos erão impenetraveis de pantanos, e bem assim como o Campo de S. Domingos que era igualmente se converteu em huma linda Praça com excellentes edificios.

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Praça da Constituição, cerca de 1845, com seu piso original
que se assemelha ao que foi destruído da rua da Constituição.

Mestre Cícero, esta mesma rua que agora entrou na memória de uma das tantas destruídas pelo Poder Público, com beneplácito do IPHAN e de alguns arqueólogos brasileiros, foi famosa em épocas natalinas, sobretudo pelo tradicional presépio do comerciante Francisco José de Barros. Façamos o seguinte, Mestre Cícero... permita-me recuar nos séculos e trazer um testemunho de um cronista, do século XIX, que soube respeitar a memória histórica da Cidade do Rio de Janeiro, e transcrever parte dos seus encantos sobre este presépio da rua dos Ciganos (hoje da Constituição):

Nas noites de natal, por volta das dez ou onze horas “levas de gente seguiam pelo largo do Rocio, em direitura á rua dos Ciganos (Constituição), que se ostentava brilhante, atravessada por cordas enfiadas de bandeiras, iliminada, coberta de folhas e de flores, e animada pela música marcial que tocava em um coreto. Gyrandolas amiudadas subiam ao ar, e o povo, com chapéos e bengalas, desviava as flechas que sibilavam cahindo. Na rua dos Ciganos (Constituição), onde são hoje os sobrados de ns. 34 e 36, tinha a sua grande mercearia o velho portuguez Francisco José de Barros, mercearia que occupava as cinco portas de sua vasta casa abarracada. Nas proximidades do Natal, o estabelecimento desapparecia, por isso que o presépe instalava-se na metade anterior da officina. Durante trinta annos o velho Barros armava o seu tradicional presépe, que attrahia toda a cidade e subúrbios.

O espaçoso salão, para o qual entrava-se por uma única porta lateral, era decorado sem elegancias, mas com originalidade; dos tectos viam-se anjinhos pendurados de barriga para baixo, a um lado uma especie de tribuna em que cantavam as filhas do proprietário os versos do Natal e Reis; o lugar destinado á orchestra conhecia-se por uma pequena estante de pinho, sobre a qual havia papeis de musica e velas accesas de carnaúba em rasos castiçaes de folha de Flandres.

O presepe, que formava o fundo, de um lado a outro, e que subia até o teto, era constituído por peças que se desarticulavam à vontade, sendo as figuras, as casas, os repuchos, as fortalezas, a historia toda feita pelo Barros, o exclusivo santeiro, marceneiro, pintor e architecto do seu presepe de variadissimas quinquilharias.

Dizem que o motivo que levara o bom do velho a festejar com a lapinha o nascimento do Deus-Menino, fora um voto, uma promessa. Mas, quanto explendor ! quanto talento de artistas aproveitando n’aquella obra que pasmava as crianças, entretinha devotamente a população inteira, causava assombro aos entendidos no assumpto !

Nas noites de Natal, Reis e Anno Bom a rua dos Ciganos (rua da Constituição) não podia ser mais bella. s pompas exteriores reproduziam-se, as meninas cantavam, a música tocava, e n’essas noites e aos domingos o presepe ficava exposto ao publico, das 6 horas á meia noite. E quem não se lembra do Barros ! daquelle velho baixo, de barba raspada e sem gravata que, vestido de brim alvo e engommado, obsequiava a todos com a mesma meiguice, com o mesmo sorriso, feliz e innocente!... E aquelle operario obscuro tinha um ideal; aquelle portuguez de outros tempos amava a este país e às suas instituições! à excepçao das noites em que o seu presepe só recebia a visita de escolhidas famílias e do público, as demais elle reservava a um benefício, cujo producto entrava para a casa da Imperial Sociedade Auxiliadora das Artes mecanicas e Liberaes, à qual legou por sua morte um valioso predio.

Na vespera de Reis os ranchos iam cantar naquelle presepe as suas cantatas diante do Menino, deitado em um berço de palhas, junto à Santa Virgem e São José, cercado de pastores e dos reis magos, vindos do Oriente. E o povo atapetava a rua dos Ciganos (rua da Constituição), e duas phrases se escutavam soltas, aqui, além, mais longe: - Missa do gallo, e presépe do Barros.

O povo atapetava a rua da Constituição, disse o cronista do século XIX. Hoje, este tapete foi puxado e destruído. Tornou-se uma prática puxar o tapete da história.
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Prezado Mestre Cícero, para finalizar, a bem dos fatos, cabe deixar registrado que o Campo dos Ciganos, fragmento do antigo Campo da Lampadosa, por decreto de 02.03.1822, passou a denominar-se praça da Constituição. No entorno desta praça, em 1844, existiam 89 edificações.

Finalmente, por deliberação de  21.02.1890, já na República, a Câmara Municipal deu-lhe a nova denominação de praça Tiradentes.

Já a rua dos Ciganos que, em 1844, tinha 67 edificações do lado impar e 68 do lado par, por deliberação de 08.06.1865, da Câmara Municipal, recebeu a nova denominação de Rua da Constituição, que ainda hoje preserva.
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Forte abraço, meu amigo e Mestre Cícero

Cau Barata

FOTOS DO PISO RETIRADO - primeira prospecção, o encontro dos trilhos dos bondes; segundo, o piso do final do século XVIII, para o século seguinte. Última imagem - de Marcos Alves - a melhor proposta do IPHAN.




























Enfim a melhor proposta do IPHAN


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